Os cobradores. Xico Sá, sobre os “arrastões”

arrastao

 

Um amigo envia um artigo idiota do Rodrigo Constantino, da Veja – acho que cometi um pleonasmo, será? – colocando em Leonel Brizola, morto há 11 anos e fora do Governo há 21, a “culpa” pelos “arrastões”  nas praias da Zona Sul.

 

Dispensei-me de ler, porque não vejo arruaças como “insurreições”, embora ache que a polícia deve, sim, cuidar para que não ocorram, mas que só mentes primárias podem reduzir a um simples problema “de segurança”.

 

Prefiro ler o artigo inteligente e bem escrito de Xico Sá, no El Pais, o qual ajudo a difundir, agora que a Folha de S. Paulo dispensou um dos textos mais saborosos do jornalismo, hoje.

 

E de quebra, ao final, ainda coloco o tema, tão bem sacado pelo Xico, do velho e sempre lindo Nélson Cavaquinho.

 

Relatos selvagens das praias cariocas

Tem morador da cidade do Rio de Janeiro, ainda sob o pânico dos arrastões, torcendo para que não dê praia neste final de semana… No que me faz lembrar, por associação automática, no título do best-seller O Sol é para todos, de Harper Lee, sobre injustiça, racismo, separatismo etc.

Não adianta tapar o sol com a peneira, o sol por testemunha, o sol também se levanta… Sigo viajando nos títulos dos livros que tentam explicar o mundo e as particularidades.

Donde o cobrador, no sentido do conto homônimo de Rubem Fonseca publicado em 1979, é um sujeito que toca o terror na cidade do Rio de Janeiro com a cólera de quem busca tudo que lhe devem na vida. Não cobra no varejo; sim pelo conjunto da obra. Ele parece cobrar, além muito além de grana e quinquilharias consumistas, atenção, afeto, amor, sexo…

Ele, o bruto, cobra que lhe arranque um dos últimos dentes da boca, cobra caro a ira que tem da madame da zona sul, ele não suporta o playboy que sai para jogar tênis todo de branco, ele dá porrada em um mendigo cego cujo tilintar das moedas na cuia de alumínio o faz perder a paciência…

“Não sou homem porra nenhuma, digo suavemente, sou o Cobrador.” Ele explode diante de um executivo que, para aliviar a barra pesada, apela para um sentimento humano tipo “homem que é homem…”

Assim, ele descreve este mesmo devedor da sociedade: “(…) deslumbrado de coluna social, comprista, eleitor da Arena, católico, cursilhista, patriota, mordomista e bocalivrista, os filhos estudando na PUC, a mulher transando decoração de interiores e sócia de butique.”

E segue com uma vida a cobrar, nesta obra-prima que antecipa, em crueldade, o recente filme argentino Relatos Selvagens: “Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol”, enumera o homem revoltado. “Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!”

Papai Noel que se cuide no Natal. O cobrador jura que irá acertar as contas. O bom velhinho é um dos seus maiores devedores.“A rua cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo.”

Feios, sujos e malvados

O eterno retorno dos arrastões nas praias cariocas me fez lembrar uma multiplicação, em versão infanto-juvenil, dos cobradores de Rubem Fonseca. Como os gremlins do cinema americano, eles se multiplicaram nas areias e calçadas de Ipanema e Copacabana. Cesse tudo que a Bossa Nova canta, o barquinho vira, o pancadão do funk se alevanta.

Os novos cobradores não pouparam ninguém do alvoroço. Nem moradores de rua e muitos menos os passageiros de morros e arrabaldes que chegaram às praias nos mesmos ônibus. Não é uma cobrança obrigatoriamente de classe. É um redemoinho dos “feios, sujos e malvados” –vide o filme italiano de Ettore Scola, da mesma época de O cobrador brasileiro– que assusta os moradores da zona sul pelo menos há três décadas.

Repare na reportagem que publicava no dia 04 /11/1984, no Jornal do Brasil, o cronista Joaquim Ferreira dos Santos:

“Ipanema, essa senhora cada vez mais gorda e poluída, reclama de novas estrias e dentes cariados em seu corpanzil: agora é culpa dos ônibus Padron, a linha 461 que, há um mês, traz suburbanos para seu “paraíso”, numa viagem de apenas 20 minutos, via Rebouças. É o que dizem seus moradores, inconformados. Ouçam só: ´Que gente feia, hein?!´ (Ronald Mocdes, artista plástico, morador da Garcia D’Ávila, bem em frente ao ponto do ônibus).”

Os novos cobradores apresentam mais uma vez uma velha dívida. Não que haja assim um movimento organizado como os crimes da política oficial. Tampouco uma chantagem de peemedebistas loucos para vampirizar o Ministério da Saúde e o país, sob o olhar complacente de uma presidenta que sangra em público –como prometeram os caciques do PSDB.

O sequestro da Primavera

Os moleques, entre um jacaré e outro nas ondas do Arpoador, arrepiam com o sol por testemunha. No derradeiro final de semana conseguiram sequestrar a Primavera e fazer o Rio saltar direto para o veraneio dos Trópicos.

Eles cobram com paus e pedras. Em alguns momentos parecem se divertir, perversamente, com o pânico no balneário; há também um quê de aventura e adrenalina nas galeras, como no sujeito solitário de Rubem Fonseca –pelo menos até encontrar a Ana, amante e cúmplice.

Estão devendo tudo à esta molecada, inclusive explicações sobre as mortes de meninos como eles, abatidos pela polícia como bichos. A última vítima foi enterrada nesta quinta, 24 de setembro, sob protesto no Cemitério do Caju: Herinaldo Vinícius de Santana, 11 anos, assassinado com um tiro na cabeça na zona norte do Rio. Aqui se deve, aqui não se paga a esse tipo de gente. Os cobradores, personagens literários ou não, sabem que ninguém baterá nem uma lata por eles em uma geografia carioca altamente paneleira.

São os estranhos e proibidões no paraíso.

Tem uma turma aqui na vizinhança da minha casa, ai de ti Copacabana, torcendo para que não dê praia neste final de semana. Tem outro grupo, conforme se vê nas redes sociais e no zunzunzumdo bairro, se preparando para reagir aos “invasores bárbaros”, como já ocorreu em algumas ocasiões.

Resta samplear, ingenuamente, o compositor Nelson Cavaquinho: “É o juízo final/ A história do bem e do mal/Quero ter olhos pra ver/ A maldade desaparecer… // O sol (…)”

Facebook
Twitter
WhatsApp
Email

13 respostas

  1. Tem um coxinha aí em cima que devia continuar lendo as porcarias do PIG e parar de escrever bobagens. Faz parte da turma dos hipócritas do país que têm se manifestado muito achando que as eleições ainda não acabaram. Deviam era escolher alguém que os represente adequadamente e que possa expor ideias e não estupidez. Façam isso e , quem sabe, a 5ª derrota será mais saborosa. Quanto ao ex presidente sociólogo, ele desmerece a sua profissão e desonra a condição de ex mandatário do país; parece que vazamento agora é contínuo, apoiado pelos 3 patetas do seu partido. Eles formam os 4 Cavaleiros do Apocalipse nacional.

  2. Estimado Brito, bom dia.

    Na sexta-feira última (25/09) passei por uma situação típica do artigo que creio seja oportuno comentar. Saindo do trabaho no meio da tarde, peguei um 315 na Barra, em frente à Leroy Merlin, com direção à Rodoviária. Com pressa e temendo ficar mais 1 hora esperando, já que essa linha é poquíssimo fiscalizada e abastecida pelas empresas de ônibus do Consórcio Transcarioca (obrigado, Sr. Carlos Osório), entrei rapidamente no ônibus. Não percebi, contudo, que vários menores, quase todos negros e pardos, sujos da areia de praia, correram para entrar no ônibus. O motorista fechou as portas, mas não adiantou: arrombaram a porta traseira e entraram quase todos sem pagar. Digo quase todos porque 1 dos garotos entrou pela frente, pagando a passagem dele e de mais um menor.

    Daí em diante a viagem foi um inferno. Tensão total com medo de sermos assaltados, eu e os demais passageiros assistíamos impotentes um show de vandalismo e falta de limites. Faziam batucada, forçavam as portas, falavam palavrões, subiam em cima do ônibus através dos dutos de ventilação (através das poltronas e esbarrando os pés nos passageiros), correndo para cima e para baixo dentro do ônibus, que estava relativamente vazio. Gritavam contra outros motoristas, diziam ser da Maré. Todos os passageiros mudos e imóveis diante da algazarra. A cada posto policial e no pedágio da Linha Amarela eles se encolhiam, mas era só passar que voltavam à carga.

    Após 1 hora de trânsito lento, que estendeu o martírio psicológico até o final, na saída da Linha Amarela para a Avenida Brasil os garotos desceram – não antes que um deles furtasse (ou roubasse, a depender da ótica jurídica) um cordão de um passageiro que estava sentado, destraído aguardando a saída dos passageiros e dos menores. Daí o onibus seguiu sua viagem e os menores, cerca de 12, desceram em direção à Linha Vermelha – provavemente com direção à Maré.

    Refletindo com os passageiros, verifiquei que de fato esses menores (ainda) não são bandidos. São garotos sem limites e educação, verdade, além de falta de civilidade. Mas não posso (talvez à exceção daquele que cometeu o furto) de marginais propriamente ditos: procuraram não incomodar diretamente os passageiros, não fizeram um arrastão para furtar todos os passageiros, como poderiam em razão do número de pessoas, sempre pediam desculpas quando esbarravam ou encostavam nos passageiros durante a algazarra. E, como disse antes, dois deles chegaram a pagar passagem (ainda que alguém possa dizer que com dinheiro provavelmente furtado de alguém, não apaga o fato de que pagaram pela viagem).

    Ainda que possa mencionar que esses garotos são crimonosos potenciais, minha visão é a de que na verdade são meninos não possuem limites, educação ou orientação. A postura deles em alguns momentos me surpreendeu: nem todos estavam de acordo com certas práticas dentro do ônibus, poucos tinham a iniciativa da algazarra e a maioria ficaria quieta se os dois ou três “líderes” não fizesse nenhuma baderna. Me parece, sobretudo, uma falta de bons exemplos e limites a seguir.

    Evidente que posso estar errado, mas, analisando friamente, e com a proteção divina que acredito ter tido nesse fatídico dia, esses garotos precisam antes de qualquer coisa uma orientação e limites preestabelecidos do que cadeia, abrigo de menores ou um simples “corretivo” físico. Claro que a conduta foi totalmente inadequada e delinquente. Mas acho isso mais um sintoma que uma causa: se há, num grupo como esse, garotos com valores morais a ponto de pagarem passagem, mesmo vendo os outros invadindo o ônibus sem pagar, ou de pedirem desculpas quando incomodam um passageiro, e ainda evitando desafiar diretamente uma autoridade, mesmo por medo das consequências, significa que ainda há solução para esses garotos e outros, em igual situação.

    A primeira questão é identificar e retirar os garotos que claramente estão apenas no mal caminho daqueles que são meninos de má indole. Os primeiros demandam uma solução simples de correção educacional, uma orientação sobre o que é certo ou errado. Um trabalho comunitário assistido, uma visão social do “outro lado” da sociedade através de conversas com pessoas de outras classes sociais, um trabalho de conscientização sobre valores morais poderiam ser excelentes caminhos.

    Os últimos, por outro lado, muitas vezes não possuem uma solução fácil: ou nasceram com um caráter deturpado, sem chances de correição, ou são aqueles traumatizados por uma tragédia ou infância terríveis que, mesmo com um acompanhamento psicológico qualificado, em sua maioria não são meninos “recuperáveis”, cujo desvio de caráter é irreversível. A esses, infelizmente, o futuro reserva poucas opções, e a reclusão correicional ainda acaba sendo a única resposta visível.

    De todo modo, me parece que tudo passa pelo que podemos ver sem preconceitos. Nessa minha experiência pessoal, percebi que mesmo em um grupo de meninos tidos como “marginais”, há aqueles que possuem uma certa dose de caráter e que não são simplesmente “pivetes”, embora tal alcunha pudesse ser usada contra todos. Talvez, sabendo suas origens, entendendo seu modo de pensar, poderíamos saber se cada um deles viu da mesma forma ou entendeu realmente o que eles fizeram naquele ônibus, até para diferenciar os verdadeiros delinquentes daqueles que estavam ali porque não tinham outro afazer ou outra diversão legal que os satisfizesse daqueles que realmente sentem prazer em delinquir e aterrorizar cidadãos, sem qualquer justificativa. O que não se pode fazer é simplesmente tratar o problema com um cassetete.

  3. Que ótimo texto de Chico Sá. Como sou louca por cinema e por Nelson Cavaquinho, vi todos os filmes citados e adoro a música Juízo Final. Por essas e outras, minha esperança é o Brasil desses meninos vindo melhor do que a triste sina que muitos, por facilidade e falta de esforço mental e coletivo, desejam lhe impor.

  4. E por falar em você… , onde anda a saudade… , onde estão os CIEPS ???
    Eu gostaria de saber onde este Constantino se escondia à epoca e se ele entrevistou alguma vez Leonel Brizola.
    A estatura ou pequenez deste homem pode ser aferida pelas besteiras que ele diz.
    Constantino??? quem é esse ??? um ZERO.

  5. Linda a canção do Nelson Cavaquinho mas esta versão da novela da Globo é péssima, na minha opinião.
    Outro dia, no dentista, tive que escutar num programa matinal, várias vezes a voz da Alcione: o SOOOOOOOL…
    Ninguém merece, é tortura demais para um cidadão!

  6. O fato de uma coisa espúria como o Constantino detonar o Leonel Brizola, só enaltece o grande governador. Se ele estivesse a elogiar o Brizola, aí sim era de desconfiar.

    De outra parte, concordo com o que disse o escritor e historiador aqui dos Pampas, Juremir Machado da Silva. Para ele, Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola foram as três maiores figuras da história política brasileira.

    Que falta nos faz um Leonel Brizola nestes momentos conturbados porque estamos passando.

  7. Nunca tinha lido o Xico Sá, escreve bem, gostei, não aborda de forma simplista a questão que se prolonga, perpassa governos e não se resolve. Ando angustiada com a eugenia que a polícia vem praticando, não passa semana sem um assassinato de jovens pobres da periferia, e com o silêncio da grande maioria sobre isso. Enquanto a classe média e todos não entrarem nessa e se juntarem às Mães da Candelária, Mães de Acari, Mães da Sé, etc, isso não vai ter fim porque o governo é conivente com essa eugenia.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *