O elogio da mentira

Vivemos a era em que a mentira dispensa argumentos porque cavalga a fé e se destina a convertidos. A conversão é ato emocional de entrega da razão. O fato cultural mais importante do Século XX foi a captura da fé pela filosofia, que assim decretou a obsolescência da crítica racional; posta em prática, essa é, agora a grande novidade.

Para acreditar na mentira, é preciso perder a noção das proporções – imaginar, por exemplo, que um sujeito de vida modesta presidiu, por décadas, um grande partido político nacional, durante oito anos comandou recursos públicos trilionários com salário alto e despesas pagas e, depois, se deixou corromper por três cubículos e duas escadarias, ou pela hospedagem em um sítio remoto, nos fins de semana.

Aceitar — como já afirmaram ongs interessadas –, que as represas de hidrelétricas brasileiras retardariam a rotação da Terra, este planeta de massa tão maior; que o lago da barragem de Tucuruí empestearia a Amazônia com emanações de metano e gás sulfídrico; ou que inseticidas e fungicidas usados nas lavouras (antes, as vacinas) seriam a causa do autismo, afirmação que ouço repetirem agora.

Admitir que não houve um golpe de estado em 1964, quando houve, e dado antes do tempo por velho militante integralista Olimpio Mourão Filho, o mesmo autor do Plano Cohen, mentira antissemita de 28 anos antes.

Por que a política – o debate sobre a gestão das causas públicas –, a ecologia – a preocupação com o meio ambiente – ou a narrativa histórica aceitaram conviver assim com o altamente improvável — portanto, que teria de ser bem comprovado – e deslavadas falsidades?

O que levou falantes institucionais, tratando de assuntos tão sérios, a violar a primeira das normas de conversação do filósofo inglês Paul Grice: “não afirme o que crê ser falso ou de que não tem provas suficientes para confirmar a veracidade”?

“Deus morreu”, escreveu Nietzsche –, mas não a retórica das religiões, que, em Seu nome, ora consagraram vacas indianas para salvar o leite das crianças, ora inventaram um santo graal – o cálice de Jesus aprisionado em Jerusalém – para dar finalidade às cruzadas cristãs contra o islamismo. Jean Paul Sartre observou que, sem a divindade a quem atribuir as culpas, os homens já não poderiam furtar-se à responsabilidade pelas consequências de seus atos.

Coube a Martin Heidegger, o filósofo mais influente do Século XX, proclamar o que se chamaria de “fé sem Deus”: em seu artigo “Sobre a essência da verdade” (1943), afirma o poder de alguns homens de conformar o mundo a seu discurso, e não o contrário como propusera, no Século IX, Isaac Israeli: “adaequatio intelectus ad rem”, adequar o

Tal perspectiva abstrata contemplou, ainda em vida desses personagens, duas aplicações práticas: a desenvolvida com poderes absolutos do Estado por Joseph Goebbels, na Alemanha nazista; e a que se consolidou nos Estados Unidos – e, daí, para o mundp – a partir da proposta de “fabricação do consentimento” de Walter Lippman (“Public Opinion”, 1922) e Edward Bernays (“Propaganda”, 1932), mediante o uso orquestrado dos meios de comunicação.

São iniciativas paralelas, que trocaram informações o tempo todo; após a Segunda Guerra Mundial, estratégias metodológicas desenvolvidas pelos alemães, sobretudo no controle dos currículos escolares, foram incorporadas pelos americanos, tal como a tecnologia dos mísseis V-2.

Em um texto de 1988 (“Manufacturing Consent”), Noam Chomsky e Edward Herman constantam que a grande mídia dos Estados Unidos tornou-se “um eficiente e poderoso conjunto e instituições ideológicas que desempenham função de propaganda sistêmica em conformidade com forças do mercado, presunções internalizadas e autocensura, sem coerção visível”.

Nos últimos 30 anos, com a globalização, o crescente desafio à hegemonia global e a concentração das tais “forças do mercado” – reduzidas hoje aos interesses de investidores financeiros – tornou-se necessário incorporar tortuosamente ao liberalismo de ascendência inglesa e matriz vitoriana a retórica fascista – e, com ela, a pós-ciência e a pós-verdade, novos nomes para a crendice e a mentira, temperadas pela arrogância.

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22 respostas

  1. Lula é corrupto?

    “Para acreditar na mentira, é preciso perder a noção das proporções – imaginar, por exemplo, que um sujeito de vida modesta presidiu, por décadas, um grande partido político nacional, durante oito anos comandou recursos públicos trilionários com salário alto e despesas pagas e, depois, se deixou corromper por três cubículos e duas escadarias, ou pela hospedagem em um sítio remoto, nos fins de semana.” (Nilson Lage)

    Se o PT é um partido tão corrupto e Lula é chefe de uma orcrim, por que Moro e todo o MPF, com o respaldo de toda a estrutura do governo, acesso a todos os organismos internacionais de combate à corrupção e recursos financeiros ilimitados à disposição, concentrou todo esse poder para condenar Lula em dois processos merreca?

    1. Lula não é corrupto. Sua moral é adequada, mas sua ética, a praxis da moral, a moral tornada comportamento, tem limites muito largos. Por essas fronteiras passam muitas coisas que são tomadas pelos inimigos (que sua vaidade demorou 70 anos para reconhecer porque ele sempre achava que todo mundo gostava dele) de maneira convenientemente deturpadas e usadas para detona-lo. Numa pessoa comum, no comum dos mortais, uma ética flexível pode quando muito fazer com que um indivíduo pague muitas multas de trânsito, por exemplo. Num presidente da república que se propõe, com sucesso, a combater a pobreza e a injustiça social (com o inevitável combate aos privilégios), esta flexibilidade dos limites tido por muitos como bonachão, boa gente, cheio de tapinhas nas costas, vira para os inimigos argumentos mais do que sustentáveis, superestimados para botá-lo na cadeia, onde ele alias, está. Como não sou jornalista, historiador ou algo semelhante, não tenho provas dos desvios cometidos pelo Lula (lembrei-me que ele chegou a usar jatinhos da FAB para buscar seus netos em SP para passar os fins de semana no palácio. Coisas assim e não tão pequenas), mas tenho memória do “aconchego” que empresários, partidos escrotos como o pmdb, segundos escalões e presidentes de empresas tinham pelo Lula… e é claro, o que isso podia render.

      1. Discordo. É lógico que Lula não é santo. Mas sua moral e sua ética política não dão motivos para críticas relevantes.
        Acho que as críticas que você faz são baseadas apenas em suas convicções, que você interpreta como verdade e não como opinião.
        Eu por exemplo, não acho que Lula sempre achou que todo mundo gostava dele. Ele é inteligente. Se nunca ganhou em primeiro turno, por que deveria achar que todos gostavam dele? Para mim, ele se equivocou foi quando acreditou que todos reconheciam os méritos dos governos dele, mesmo os que não gostavam dele como pessoa, por conta da alta aprovação que teve quando terminou o segundo mandato.
        Diz você: “Como não sou jornalista, historiador ou algo semelhante, não tenho provas dos desvios cometidos pelo Lula (lembrei-me que ele chegou a usar jatinhos da FAB para buscar seus netos em SP para passar os fins de semana no palácio.” Você ai usou uma falácia para fazer parecer que é inegável que ele cometeu desvios, apenas você não pode provar, porque não é um profissional capacitado para isso. Nem você, nem jornalistas, nem historiadores ou “algo semelhante” apresentaram provas de que ele é corrupto ou cometeu desvios. E não se condena sem provas. Quanto a essa história de jatinho, seja ou não fake news, para se saber se são coisas pequenas ou não haveria que se avaliar caso a caso. Um presidente tem direito e necessidade de descanso. Com certeza em muitos momentos Lula sacrificou suas folgas para atender interesses da nação (certamente não receberia horas extras por isso). Em uma dessas ocasiões, talvez tenham trazido seus netos para aliviar seu stress. Se um jatinho do governo não pode ser utilizado em benefício de um presidente em situações justificáveis, alguma coisa está muito errada nesse governo.
        Você afirma que a ética de Lula tem limites muito largos, como se você fosse o dono da verdade e essa afirmação fosse incontestável. Na minha opinião, questionável é a ética política dos que criam falácias ou enviesam os fatos, para poder manter intacta sua crença de que Lula é corrupto ou antiético.

        1. A última vez que fui esculhambado este tanto foi quando uma velhota carola queria me puxar para dentro de uma igreja onde uma missa estava começando e eu me neguei dizendo que era ateu.

          1. Desculpe, minha intenção não foi esculhambá-lo. Só quis expor minha opinião. Ando meio estressada com essa história de convicção e pós verdade. A única certeza da vida é a morte, mas parece que gente demais quer impor suas crenças como verdades absolutas.
            Mas o risco de ser puxado para dentro de alguma igreja por mim, pode ficar tranquilo que não existe. Talvez exista o risco de eu puxá-lo para fora delas…

        2. Aliás, Jose Ricardo Romero mete o pau no Lula e no PT com entusiamo desde muitos outros carnavais…

      2. Eu concord em parte. Os processos contra o Lula sao totalmente corruptos e ele realmente esta’ preso injustamente. Foi o melhor president que ja tivemos.

        Mas acho que o problema com o Lula comeca com a Carta aos Brasileiros. Teria sido possivel um governo do PT sem a Carta aos Brasileiros? Nunca vamos saber. Mas sabemos que num governo de coalizao com o PMDB nunca seria possivel nao roubar. Ao indicar politicos do PMDB para a Petrobras e outras estatais ‘e como dar um cheque em branco para a corrupcao. E se roubou muito no PMDB como se ve agora. Como se roubou em todos os governos que o MDB participou nos ultimos 50 anos. E que o PT deveria ter combatido, mas so’ comecou a fazer no fim do primeiro governo da Dilma.

        Acho que esta estoria do jatinho totalmente irrelevante. Mas nao entendo de jeito nenhum porque o Lula indicou a Dilma para president. Ela ‘e absolutamente honesta, mas absolutamente incapaz de fazer politica e consequentemente incapaz de governor. Acho que o plano A era o Dirceu, mas quando ele foi abatido na acao 470 Lula ficou sem a opcao principal e achou que indicando a Dilma poderia ter muita influencia no governo dela. A verdade ‘e que a influencia foi quase nenhuma, porque entre os muitos defeitos de Dila esta’ o fato de ser turrona. Esta foi com certeza uma demonstracao de vaidade. Se era para indicar um poste este poste deveria ter sido o Haddad

        Para terminar, achei muito ruim a tentative de ridicularizar a defesa do meio ambiente. O record da Dilma no meio ambiente ‘e muito melhor quee o do Lulla. Ela conseguiu e se empenhou para diminuir o desmatamento e conseguiu. Lula nao. Mas pior do que nao defender o meio ambiente foi nao defender as populacoes que viviam nas areas ribeiras onde foram construidas as represas. Este estao numa m… de dar gusto. Foram removidos das suas casa, transportados para regioes onde nao podem manter seu estilo de vida que lhes provinha o sustento, e atualmente num ritmo de mais de 1 assasinato por mes.

        1. Acho que Lula nomeou Dilma porque achou ela era a melhor pessoa para levar adiante um combate sério contra a corrupção, sem se deixar intimidar por ninguém. Infelizmente, sua falta de habilidade política inviabilizou o projeto.

        2. Concordo com o que você escreveu, exceto por tentar diferenciar Dilma de Haddad. Acho que ambos têm traços de personalidade muito parecidos (alta capacidade técnica, mas habilidade política quase nula, vaidade e teimosia). Fosse Haddad nos mandatos 2011-2018, o resultado seria bem semelhante.

    2. pois é

      é interessante ver a reação dos fascistas quando confrontados com essa pergunta simples e direta – se Lula roubou tanto onde estão as contas, as malas a bufunfa?

  2. Isto é visto claramente porqui , o deus mercado aliado a grande mídia a torpedear as massaas em busca de seus abjetos desejos . Há os que não vêem em nome ” O senhor os abençoe ” . E a sandice só cresce em nome de Deus . E no fim serão todos perdoados .

  3. Lindo texto,e inteligente interpretação.Contudo,um “ÓBICE”,no que tange a intenção de atingir,TODO O POVO,que afinal,deveria ser o FOCO DO BLOG,Mas tais ARRAZOADOS,inda que JUSTOS E INTELIGENTES,atinge somente,pequena parcela da população,particularmente a ínfima parcela da NANICA BURGUESIA,que ainda entente existir o cérebro,pra pensar,mas cujo peso social é quase nulo,e dever-se-ia focar particularmente,até os limites das compreensões,do VELHO,SOFRIDO,POUCO LETRADO E INDEFINIDAMENTE EXPLORADO,o VELHO POVÃO DE GUERRA.Vamos fazer propaganda,que atinja o POVÃO,o resto,são SOFISTICADOS SOFISMAS.Infortunadamente,sempre usados,mesmo por aqueles todos,que defendem os INTERESSES DO VELHO POVÃO.Sugiro ao lustre blogueiro,falar BRASILEIRO DO POVARÉU.

  4. Bom dia Brito. Sou professor de Geografia em Cuiabá/MT e sempre digo aos meus alunos que a disciplina mais importante que existe é a Língua Portuguesa. Como é que alguém espera articular idéias, elaborar um texto, interpretá-lo, sem o conhecimento do idioma pátrio, do vocabulário? Por isso é que não hesito em afirmar que, para mim, você é um dos melhores textos da crônica política brasileira. Seu artigo é um bálsamo nestes tempos tão difíceis. Parabéns, grande abraço e bom fim de semana.

    P.S. – Não sei sua preferência, mas hoje é Mengo!!!

  5. O que levou os think tanks americanos à conclusão de que se poderia tomar facilmente o poder no Brasil na base da enganação do povo, foi a constatação de que o golpe do bilhete premiado de loteria ainda acontece todos os dias em todo o país, de norte a sul e em todas todas as classes sociais, apesar de ser a vigarice mais manjada do mundo.

    1. As pessoas que caem nesses tipos de golpe são, via de regra, pessoas muito apegadas a dinheiro e bens materiais. Estão sempre desejando e/ou pedindo a Deus dinheiro e riqueza. Por isso, são presas fáceis de espertalhões oportunistas. Ficam tão extasiados achando que seus desejos estão sendo atendidos, que perdem o senso crítico.

        1. Rita, moro em SC. Esse golpe aqui na cidade onde moro é tão comum, e baseado no que vc afirmou, agora entendo pq o bozo ganhou de lavada aqui no estado e aécio teve 85% dos votos por aqui…

          1. é incrivel como esse tipo de coisa salta aos olhos, né Luciano?
            vem sempre o pacote completo – nunca se é canalha pela metade

          2. e são esses que se gabam de serem trabalhadores, europeus e adoram ofender nortista – só gente de “Bens”

  6. Tenho 74 anos. Sou do tempo em que, na dúvida, consultava-se uma enciclopédia. Minha Barsa tinha 21 alentados volumes. Processo trabalhoso. Hoje, um clique no celular e temos um mundo a nossa frente com tudo que precisamos saber, em uma ou mais versões. Então porque diabos as pessoas acreditam em tantos absurdos sendo tão fácil e simples tirar a dúvida? A resposta, em parte, parece-me ser aquele velho ditado: “deu no jornal então é verdade”. E como o “nosso jornal de cada dia” não prima pela verdade…Ah, antes que me esqueça: qual o percentual das pessoas que leem apenas a manchete?

    1. Ari, eu acho que “o buraco é mais embaixo”: não basta o acesso a informação qualificada, pois esta passa por um ser humano que não é movido apenas pela razão. As crenças e desejos desempenham papel importante na aquisição do conhecimento. Como os donos do poder sabem disso, conseguiram desenvolver um sofisticado sistema de manipulação dos fatos, em que “as pessoas acreditam no que querem acreditar”, ou seja, no que está alinhado às crenças e desejos de cada um.
      Enquanto as forças progressistas continuarem na ilusão cartesiana de que o ser humano é 100% racional, não ganharemos essa guerra.

  7. “a mentira dispensa argumentos porque cavalga a fé e se destina a convertidos”.
    Isso explica em 1 linha a personalidade dos coxinhas/bolsominions.

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