O “catadão” do Datafolha: misturar para induzir. Por Letícia Sallorenzo

catadao

O Datafolha foi a campo na semana passada,  dias 14 e 15 de julho. Catou 2.792 patos entrevistados em 171 (que número, senhores, que número!) municípios, com aquela já famosa “margem de erro máxima de 2 pontos percentuais para mais ou para menos considerando um nível de confiança de 95%. Isto significa que se fossem realizados 100 levantamentos com a mesma metodologia, em 95 os resultados estariam dentro da margem de erro prevista.

A dita pesquisa rendeu quatro posts no site do instituto: um sobre o tal índice histórico de confiançaum sobre intenção de voto em 2018; outro com a avaliação do governo Temer e mais um sobre a opinião do brasileiro sobre a Previdência

Foram quatro textos com tabulações imensas, todas geradas geradas a partir desse único campo, dos dias 14 e 15, com os mesmos 2.792 cabras. A leitura pontual de cada um desses quatro textos daí de cima me permitiu fazer tipo uma engenharia reversa  do questionário que os cabras tiveram que responder: um calhamaço cuja última pergunta enunciada (já explico o que quero dizer com isso) é a de número 39.

Li o enunciado de cada uma das páginas com os levantamentos publicados. Quando encontrava um título “P. XX [pergunta número tal]”, copiava  e colava no Word. Percebi que estava arrumando os números fora de ordem. E, claro, que as perguntas não foram feitas na ordem em que foram tabuladas e seus resultados apresentados.

Daí eu fiz aqui um processo parecido com o que eu tô fazendo no meu mestrado: uma análise sintático-semântica e de contexto. Pra se ter uma ideia do que se passou pela cabeça de que cada cabra respondedor de pesquisa ao ouvir a ladainha, o interrogatório, o questionário.

Então vamos lá. Vocês vão perceber que tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo nesse questionário.

Das seis primeiras perguntas do questionário, quatro podem ser encontradas no texto sobre intenção de voto (aquele que diz que o Lula tem uma rejeição do caramba e tals). Vamos a elas:

P.1 Em 2018 haverá eleição para presidente da República. Em quem você pretende votar para presidente na eleição de 2018 ? (Resposta espontânea e única, em %)

P.2 Alguns nomes já estão sendo cogitados como candidatos a presidente EM 2018. Se a eleição para presidente fosse hoje e os candidatos fossem estes ______________, em quem você votaria ? E se os candidatos fossem estes ________, em quem você votaria para presidente ? (Resposta estimulada e única, em %)

[vamos partir do pressuposto de que o Datafolha tem critérios, e mostrou os nomes num cartão circular – sem risadinhas, por favor – porque se for em forma de lista beneficiaria os primeiros do rol. Como a pesquisa não é registrada no TSE,  não há acesso ao PDF com o questionário e a forma de apresentação das respostas]

Seria o mesmo na pergunta pra ver o índice de rejeição:

P.3 Em quais desses candidatos ____________ você não votaria de jeito nenhum no primeiro turno da eleição para presidente da República em 2018 ? E qual mais ? (Resposta estimulada e múltipla, em %)

Não encontrei as perguntas 4 e 5 em nenhum dos documentos publicados. Portanto, não vou fazer nenhuma especulação. Nem mesmo a de que as perguntas 4 e 5 podem entrar no conjunto das perguntas referentes à corrida presidencial de 2018. Já, já vocês vão entender o porquê;

P.6 Se o segundo turno da eleição para presidente fosse hoje e a disputa ficasse apenas entre _________________________ em quem você votaria ? (Resposta estimulada e única, em %)

[aqui é pra fazer previsões de segundo turno. Não me perguntem o porquê. Até aqui a pesquisa está meramente técnica.]

P.7 Você sabe o nome do atual ocupante do cargo de presidente da República ? (Resposta estimulada e única, em %)

[já a pergunta 7 apareceu em outro texto do site, o que faz a avaliação de Temer. Faz sentido gerar um outro texto, mas também seria bem sincero da parte do instituto dos Frias tabular tudo num catadão só, e depois fazer os catadinhos separados. Enfim, critérios.]

P.8 O presidente interino Michel Temer está completando dois meses de governo. Na sua opinião, Michel Temer está fazendo um governo: (Resposta estimulada e única, em %)

[Aqui o bicho começa a pegar. Ponha reparo na pergunta sete. Indaga sobre o atual ocupante do cargo de presidente da República. A pergunta oito fala sobre O presidente interino, Michel Temer. Vamos combinar que atual ocupante do cargo não é a mesma coisa que presidente interino. A Constituição prevê, nas Condições Normais de Temperatura e Pressão, um total de quatro manés cidadãos que podem ser presidentes interinos: o vice, o presidente da Câmara, o presidente do Senado e o presidente do STF.

Agora vamos pôr reparo no alto poder semântico dos verbos usados nas questões sete e oito. Na questão sete, saber dá muito poder ao entrevistado: ele S A B E. Ele tem conhecimento, domina a informação. Na oito, temos um gerúndio (corretamente utilizado, do ponto de vista sintático) taxativo: Temer está completando. Agora se coloque no lugar do cabra que disse que sabia e errou o nome do presidente da vez ( e foram 33% dos entrevistados, segundo a pesquisa). Na pergunta seguinte, as entrelinhas o informam de um processo que já começou há alguns meses, e que continua em andamento. Como você se sentiria se, sutilmente, um pesquisador te taxasse de desinformado, na sua cara? Você,defensivamente, vai posar de informadão, certo? E como fazer isso? Ora, você vai con-cor-dar com o que o pesquisador te perguntar.]

P.9 De zero a dez que nota você dá para o desempenho do governo Michel Temer ? (Resposta espontânea e única, em %)

[As maiores concentrações de respostas ficaram em números médios (5 e 6) e no número zero. Deu média 4. Se você acabou de descobrir quem é o teu presidente, assim, de chofre, você vai fazer média. Foi o que rolou.]

P.10 O Senado analisa um pedido de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Na sua opinião, os senadores deveriam votar a favor ou contra o afastamento definitivo da presidente Dilma Rousseff ? (Resposta estimulada e única, em %)

[O cabra deve dizer se é a favor, contra, indiferente ou não sabe. Essas duas últimas respostas totalizaram seis pontos percentuais (três pra cada uma). Aqui o a favor ficou com 58%. Poderia dizer que é o início de uma concordância com a pesquisa, mas vou me abster por agora. Ademais, ponha reparo no micropoder estendido novamente ao entrevistado: como os senadores deveriam votar. Até agora, nada foi informado ao entrevistado sobre o processo de impeachment, a não ser sua existência. Nem mesmo ele foi convidado a responder se “está a par do processo de impeachment que corre contra Dilma Roussef”. (A não ser que essa pergunta seja uma das não reveladas)]

Como, aliás, sumiu também a pergunta 11;

P.12 E na sua opinião, a presidente Dilma vai ou não ser afastada definitivamente da Presidência ? (Resposta estimulada e única, em %)

[Sim, 71% dos entrevistados! Na sua opinião, ó entrevistado, você que tem opinião formada sobre tudo, conte-nos o que você pensa? Raciocínio de resposta: já que o Temer está completando tanto tempo de governo, Dilma tem que ser afastada! Não, isso não é apelação minha. Há quem pense assim.]

P.13 Na sua opinião, o que seria melhor para o país: que Dilma voltasse à Presidência ou que Michel Temer continuasse no mandato até 2018 ? (Resposta estimulada e única, em %)

[mais uma vez apela-se à poderosa opinião do entrevistado, aquele que há cinco perguntas descobriu quem era o presidente desta bagaça. Todos os verbos estão em tempos que indicam ou suposições (futuro do pretérito, o nosso modo condicional) ou incertezas (modo subjuntivo). Dilma voltar ou Temer continuar são duas incertezas. O entrevistado nem pensa nisso, mas a função do modo subjuntivo é mostrar uma incerteza. Isso já está introjetado na nossa compreensão de língua. E ele, o entrevistado, tem o poder de acabar com essa incerteza.]

As perguntas 14 a 17 também foram abduzidas e não constam das tabulações do Datafolha.

P.18 Você diria que o Brasil é um país ótimo, bom, regular, ruim ou péssimo para se viver ? (Resposta estimulada e única, em %)

Esta é a primeira pergunta que aparece no texto sobre o “Índice de Confiança do Brasileiro”. O verbo está no futuro do pretérito do indicativo, o nosso modo condicional. Quais condições o entrevistado está ponderando neste momento não dá pra dizer, pois falta o caminho de raciocínio das 4 perguntas anteriores.

P.19 Você diria que tem mais orgulho do que vergonha ou mais vergonha do que orgulho de ser brasileiro ? (Resposta estimulada e única, em %)

[perguntinha confusa! Temos quatro palavras-chave aqui, duas de semântica positiva (mais e orgulho) e duas de semântica negativa (menos e vergonha), que são embaralhadas na cabeça do entrevistado. Mais orgulho ou mais vergonha ou menos orgulho ou menos vergonha? Organizar o raciocínio semântico é meio confuso.

Véi, a pergunta 20 não foi recuperada no meu garimpo, mas a pergunta 21…

P.21 Na sua opinião qual é o principal problema do país hoje ? (Resposta espontânea e única, em %)

A pergunta 21 aparece computada não no texto do índice de confiança, mas no da avaliação do governo Temer. E começa a fase “Escravos de Jó” dos questionários. Interessante perceber nessa pergunta três respotas que não pontuaram, mas mesmo assim entraram no rol: habitação, falta d’água, reforma agrária/sem terra. Imagino que essas respostas pontuaram em levantamentos anteriores, por isso aparecem lá.  

P.21A Como você avalia o desempenho do juiz Sergio Moro na Operação Lava Jato: ótimo, bom, regular, ruim ou péssimo ? (Resposta estimulada e única, em %)

[Calma. Sem surtos. Vamos pensar aqui. Você acabou de responder sobre vergonha e orgulho com o seu país, foi instado a responder espontaneamente sobre o principal problema e agora tem que falar sobre o desempenho de Sérgio Moro na Lava Jato. Lava Jato who, cara pálida? Que que tem a ver a Lava Jato com as calças? Depois de tanto problema, Sérgio Moro é a solução? E a pesquisa é isentona, né? Só um monte de número tabulado, com margem de erro de até dois pontos percentuais para mais ou para menos e o índice de incerteza e armaria!!! Imagina se não fosse!!!]

P.22 Na sua opinião, daqui para frente a inflação vai aumentar, diminuir ou ficar como está ? E o desemprego, vai aumentar diminuir ou ficar como está ? E o poder de compra dos salários vai aumentar, diminuir ou ficar como está ? (Resposta estimulada e única, em %)

[Num disse que a gente tinha entrado na fase “Escravos de Jó” dos questionários? Depois de falar sobre o Moro, que chegou de paraquedas nessa pesquisa, a pergunta 22 volta a responder ao questionário do índice de percepção do Datafolha. Olha que belezura, gente! Você tem que pensar sobre inflação, desemprego, poder de compra e salário, tudo ao mesmo tempo agora, indo pra cima e pra baixo e sempre pensando daqui pra frente (exercício de futurologia). Entenderam por que os resultados foram disparatados? A pergunta está confusa!!!]

P.23 Na sua opinião, nos últimos meses, a situação econômica do país melhorou, piorou ou ficou como estava ? E no seu caso pessoal, você acha que a situação econômica melhorou, pirou ou ficou como estava ? (Resposta estimulada e única, em %)

[outra pergunta do índice Datafolha. A sacrossanta opinião do entrevistado volta a ser convocada, mas ele tem que pensar no passado, logo depois de exercitar sua futurologia, ele tem que pensar no passado do país e da vida dele. E já volta correndo pro futuro que, se Deus quiser, vai ser melhor.]

P.24 E nos próximos meses, na sua opinião, a situação econômica do país vai melhorar, vai piorar ou vai ficar como está ? E no seu caso pessoal, você acha que a sua situação econômica vai melhorar, vai piorar ou vai ficar como está ? (Resposta estimulada e única, em %)

Na pergunta 22, o cabra foi pro futuro; na pergunta 23, foi pro passado; agora ele volta para o futuro, numa viagem de matar Michael J Fox de inveja. E sujeito a todo tipo de consideração pessoal…Ai, que pesquisa rigorosa essa, não? (é, eu sei…)

As perguntas 25 a 29 também não puderam ser recuperadas.

P.30 Com qual idade você espera se aposentar ? (Resposta espontânea e única, em %)

É a pergunta 30 que inaugura a série sobre a perspectiva dos brasileiros com relação à previdência. Como a resposta é individual, o cabra pensou nele só. É a idade com que ele espera se aposentar. É um verbo fraco, que confere pouco poder ao entrevistado. Sumiu da pergunta o na sua opinião, repararam? 60 anos foi a média obtida na resposta. Agora responda sinceramente: nos seus mais profundos desejos, você quer passar dos 60 anos ralando na labuta? Ninguém quer… O que se apreende disso? “Brasileiro não tem noção da realidade previdenciária.” Vaiveno

P.31 Na sua opinião, os trabalhadores brasileiros, em geral, se aposentam mais cedo do que deveriam, mais tarde do que deveriam ou na idade adequada ? (Resposta estimulada e única, em %)

Aqui o cabra é convidado, sutilmente, a dizer se é vagabundo ou ralador.

P.32 Você é a favor ou contra o governo estabelecer uma idade mínima para os brasileiros se aposentarem ? (Resposta estimulada e única, em %)

O cabra falou com que idade ele espera se aposentar. Deu um número baixo. A seguir, deu uma pensadinha se ele é realmente digno de ter controle sobre sua aposentadoria, pois “os brasileiros, em geral, se aposentam mais cedo”, conforme enuncia a ordem da pergunta 31. Aqui ele vai concordar que brasileiro é incapaz de decidir sobre a própria aposentadoria, melhor que o governo o faça por ele.

P.33 Você é a favor ou contra os homens e as mulheres terem a mesma faixa de idade mínima para se aposentarem ? (Resposta estimulada e única, em %)

A resposta é zero ou cem. Contra ou a favor. Não existe ponderação, não existe sequer espaço pra fazer alguma consideração. É sim ou não. Só que a questão não é de sim ou não. Tem muita variável envolvida.

P.35 Atualmente, em relação ao seu emprego, você diria que:

A questão 34 não foi recuperada, mas a questão 35 está no outro questionário, o do índice Datafolha. Você acabou de descobrir que não tem competência pra pensar em previdência, porque quer se aposentar cedo, e agora vai pensar sobre o seu emprego. Tremeu na tabela, né?

P.36 Você diria que atualmente a possibilidade de ficar sem emprego é:

P.37 Atualmente, em relação ao seu trabalho, você diria que: (Resposta estimulada e única, em %)

P.38 Você diria que atualmente a possibilidade de ficar sem trabalho é: (Resposta estimulada e única, em %)

As perguntas 36 a 38 fazem indagação similar para categorias diferentes. Há uma sutil diferença entre emprego e trabalho. Nada sutil, aliás, num país onde o trabalho informalizado tem um peso imenso.

P.39 Você diria que o dinheiro que você e sua família ganham é: (Resposta estimulada e única, em %)

Aí eles fecham com uma pergunta que esqueceram de encaixar lá em cima, mas ia ajudar a compor os números. Poderiam ter encaixado na hora do medo de perder o emprego, mas aí muitos poderiam dizer que ganham muito pouco, o que daria problema com o patrão. Aqui ficou ótimo..

É óbvio que a indução e o “jeitinho”  do catadão não vão transformar urubu em meu louro, mas numa pesquisa que proclama um margem de erro de dois pontos, basta que influenciem 56 patos  dos 2.792 entrevistados para mandá-la para o espaço.

Faz a conta aí: se 14% ( entre 13,5 e 14,4%, por conta do arredondamento) acham Temer ótimo ou bom, isso são entre 378 e 403 manés  entrevistados. Qualquer “trocado” importa, né?

Fora o “não sei que é, mas quero que fique” da pergunta sobre quem é o “atual ocupante do cargo de presidente da República”. O importante é não passar frio de noite nesse inverno, né?

*Letícia Sallorenzo é jornalista e menos conhecida que seu antológico personagem, ora em repouso, “A Madastra do Texto Ruim”, com que desanca(va) o impropriamente escrito pela vasta fauna jornalística.

 

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14 respostas

  1. Esta pesquiseca aí é mais um estelionato midiatico, engana-trouxa e muito bem encomendada para criar clima favorável a votação do golpe. Fiquemos atentos, outras virão. A mídia só traz boas notícias de Brasília. A economia começou a bombar de repente. Tudo faz parte de um conluio midiático para alavancar os golpistas. Fazem o que pode, mas a verdade prevalecerá.

  2. Agora pensa no cara que faz a pesquisa, tu acha que ele vai proporcionalmente em todos os bairros, ou dá para os vizinhos responderem, ou ele mesmo

  3. A gente vem acompanhando a realidade argentina de perto e há muita semelhança com a brasileira, com a diferença que Mau (minha sogra se recusa a pronunciar seu nome) ganhou as eleições. Obviamente com a inestimável ajuda das empresas de comunicações hegemônicas. Elas só noticiam o que lhes interessa e mentem descaradamente.

  4. PARABÉNS 100 % MAIÚSCULO para a JORNALISTA 100 % MAIÚSCULA! Que carência no Brasil de JORNALISTAS deste NÍVEL! Faz renascer a ESPERANÇA, não nas “pesquisas” que sabemos se tratar de uma mídia BAGACEIRA, dirigida por Gangues da DesComunicação que ASSALTAM os cofres Públicos para sobreviverem, mas são “adeptos do livre mercado”…para os outros, claro. Mas ter ESPERANÇA numa profissão tão cara à Democracia, como o BOM JORNALISMO, é sim ACREDITAR EM DIAS MELHORES! E parabéns à ELA pelo ótimo humor, outra coisa RARÍSSIMA nestes tempos de mídia BANDIDA E GOLPISTA!!!

  5. Só imbecis ainda acreditam em pesquisas do Datafolha do Ibope e outros “institutos” do Brasil. E ainda temos que ver esses coxinhas globomidiotizados achando tudo muito normal. Tomara que a Dilma faça como pretendem fazer na Turquia. Paredão nos golpistas, junto com os coxinhas.

  6. O Merval, gaguejando, disse no J10 que os senadores podem votar o golpe com fatos “alheios” ao processo remetido ao Senado. É muita canalhice dessa Globosta. Falam abertamente em rasgar nossa Constituição.

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